Susana Neves

 

Agarrar o arco-íris

 

Estação de Santa Apolónia, quarta-feira, dia 17 de Outubro. Dirijo-me com passo decidido à bilheteira mais próxima e peço: “Quero um bilhete para o arco-íris”. O funcionário levanta o sobrolho e responde: “ Não vendemos, pergunte lá fora”. Saio desconcertada, se nenhuma viagem conduz ao arco-íris porque razão viajar? Na rua, ninguém sabe, uns olham com estranheza, outros preferem a indiferença e afundam-se no ruído das suas próprias buzinas. Se quero chegar ao arco-íris o melhor é farejar, fazer como os animais, soberanos do presente e da fala sem ruído. Deixar-me levar pelo instinto em demanda da mais sagrada divindade: a fantasia. A chuva miudinha apura os odores e converte-se numa aliada. O caminho implica uma subida em degraus mas os pardais cantam teimosamente, sinal que se avizinha o mundo que procuro. Já se ouve música e através duma porta metálica espreitam longas e retorcidas trombetas. O rosto abre-se num sorriso e caiem logo à entrada as armaduras medievais. Neste mundo também há transito e engarrafamentos mas os condutores não praguejam nem insultam, têm pernas listadas de gafanhoto e saltam para cima do automóvel com cadeira e gramofone. Tempo para uma pausa musical. Atenção, há sempre um bilioso, daqueles que espumam nervos, e este esguicha com língua com cara de bicho espantado. Afasto-me desta língua sibilina, capaz de se enrodilhar na alma para a sufocar de cócegas. Como o horizonte é vasto encontro duas meninas equilibrando flores-pinha na cabeça, com elas respira-se e apetecer dançar. Espreito para dentro dos seus olhos vazios e tenho a impressão ouvir uma sentença: “És aquilo que levas sobre a cabeça”. E logo, outra voz de menina pergunta: “O que levas na cabeça semeaste ou compraste?”. E nem há tempo para responder porque logo surge um senho de casa na cabeça liderando uma procissão de árvores e plantas gente. Há muitos rostos siameses neste mundo irrequieto e na televisão naturalmente grasnam os patos, que quando não falam mostram a fileira de dentes impecável. Entrou agora mesmo outro viajante, não traz papel e caneta, mas as suas mãos são pincéis em repouso. Parece-me que o conheço de algum lado, talvez seja ele o mago deste universo. Digo a palavra mágica. Ele sorri e fala baixinho como se não falasse e conta histórias simples, daquelas que generosamente chegam a toda a gente e fazem nascer as florestas que eram apenas pura intenção. E às minhas perguntas responde sempre nesse tom demorado de quem escolhe o essencial. Agora fala das suas aventuras de ilustrador e pintor de histórias-enigma. De onde vêm estas histórias?. Do caldeirão do imaginário e da memória, sem obstáculos nem entraves racionais. Neste mundo bem humorado e poético, povoado de serpentes que usam coroas reais e máscaras que dão as notícias, não há palavras que usem óculos escuros para não verem nem serem vistas.

“Quero que as pessoas agarrem o arco-íris”, diz, sem querer explicar o que não tem explicação. Os personagens à solta no espaço não nasceram de um conto previamente definido, são como as cegonhas empoleiradas sobre os cabos eléctricos no Alentejo: limitam-se a estar. Aqui não há títulos nem legendas, e as muitas palavras funcionam como imagem, são movimento, texto para jogar. Afinal, agarrar o arco-íris parece ser mais difícil do que mergulhar no pote de ouro. Na cultura do stress tornou-se complicado apreciar sem esforço e aceitar a liberdade e o desafio de construir uma história. O real ruidoso e cheio de falsos brilhos abriu uma gigantesca bilheteira onde se vendem viagens para a intensidade, como se a intensidade se pudesse comprar. Ao mago basta uma memória, um brinquedo, daqueles antigos com patine, um móvel rústico, um cão castiço, uma chaleira a fumegar e os seus pincéis ganham pernas e asas e nascem desenhos e pinturas que ora mordem as convenções nos calcanhares ora sussurram: “Deixa lá isso e vem brincar!”.

 

Susana Neves

Lisboa de  22 de Outubro de 2001