Um pintor de estórias no mundo do mau aspecto
O João é um menino de escola. Levado da breca, diabinho largado no pequenino mundo de brinquedos que ele próprio inventa dentro e fora das telas. Criança acanhada, de olhar inocente, adora pregar partidas, como quem não quer a coisa. E goza que se farta, o sonso, babando-se no bibe.
Começa logo por este desconcerto: o João é escritor mascarado de pintor. Teve um desvio na idade da inocência e veio a cristalizar na melhor das ideias a da indecência, passou a escrever com pincéis, mudou de léxico e mandou às urtigas as regras gramaticais. Não satisfeito, pintou-se a ele próprio, metido em traquinices com amorosos monstrozinhos, fadas domésticas e fantasmas, estes últimos dissimulados nos brancos, nos pretos e nos vermelhos. E ali vive, no seu mundo, num puro gozo, rodeado de objectos delirantes, a tagarelar com uns e outros. Nas tintas. No solene rigor da galeria é provável que se fechem e ninguém consiga ouvi-los. Mas em casa, meninos, aviso já quem não saiba, cuidado!
Consta que um dia alguém saltou para dentro de uma das telas do João, como a rapariga no filme do Woody Allen. Apenas para ouvir mais de perto esses seres notáveis a representarem os guiões que ele escreve, explicou-se o intruso aos do mundo do quadro, para logo se apossar de uma ou outra deixa. E os seres deixaram, deram-lhe troco, foram permitindo que ficasse. E, ali ficando, sendo um deles, o intruso, babou-se no bibe de tanto se divertir. A coisa complicou-se quando mais gente veio intrometer-se nas telas dele. Vinham hoje uns traziam depois outros, e as estórias pintadas enchiam-se de vidas.
Terá sido por isso que o João deixou, agora nestes novos quadros, mais espaço para mais personagens poderem brincar? Ou será que o João nem imaginara que ainda houvesse
tantos meninos crescidos e velhacos como ele, desejosos de afabular o avesso deste mundo do mau aspecto? Na verdade, não é fácil deixar de entrar no jogo dele, quando quatro deliciosos mafarricos num céu vermelhão nos lançam um convidativo “ Onde estás tú ?”
Por mim, aceito o desafio, sempre, já que sempre me pergunto, sem saber responder-me “onde estou eu?”. Entre as criaturas do João, uma de que gosto particularmente há-de ajudar-me a resolver este insondável enigma: é aquele homenzinho narigudo e circunspecto, obsessiva presença desde os primeiros quadros do escritor, olhar de pedir desculpa por lá estar.
Desconfio saber de quem se trata. É o que menos me fala; porém, o que mais me diz.
António Avelar de Pinho
Outubro 2000