António Avelar de Pinho (2)

 

BRINQUEDOS:

O ELIXIR DA ETERNA INFÂNCIA

 

            Falemos de uma senhora chamada Genialidade, essa tão vilipendiada amante dos criadores loucos.

            Disse alguém que todo o génio leva uma tara para a cama.

            E a tara mete ideias loucas na cabeça do génio, digo eu. 

            João Vaz de Carvalho não é um génio, é um tarado genial.

            Postos os pontos nos pipis, falemos a sério: vamos brincar.

            E podem crer, o que não nos vai faltar são brinquedos.

          Crê-se que, inventado o Universo – a mais genial das ideias malucas de todos os tempos -, Deus terá pegado num pedaço de barro e dele fez esse par exemplar da perfeita imperfeição: mulher+homem. Estava encontrada a segunda mais genial ideia maluca de todos os tempos.

            Há, porém, controvérsias quanto à autoria de tais ideias.

            Como não havia de haver, se as há, e de que maneira, sobre a existência do excelentíssimo inventor.

            É certo que ninguém teve ainda a genial ideia maluca capaz de demonstrar a paternidade das referidas invenções. E é improvável que alguém venha a tê-la. Essa sim, garantidamente passaria desde logo a ocupar o lugar cimeiro no pódio das mais geniais ideias malucas de todos os tempos. 

            A palavra aos leitores que já oiço questionarem-se:

           - Mas o que é isto? Alguma brincadeira? Caramba, é um livro de arte, traz a obra de um pintor premiado e de reconhecidos méritos, tem excelentes fotografias a cores reproduzindo fielmente as telas do artista, num papel de gramagem correcta e altíssima qualidade, enfim, trata-se de um trabalho de inquestionável seriedade e louvável profissionalismo editorial e tipográfico, não lhe fica nada bem exibir deste modo, e logo a abrir, um texto de natureza duvidosa, não é correcto brincar com coisas sérias.           

            Não é correcto brincar com coisas sérias?

            Quem disse?

            É correctíssimo brincar com coisas sérias.

            Aliás, só faz sentido brincar com as coisas sérias.

            E aposto o que quiserem em como o João Vaz de Carvalho pensa o mesmo. Posso garantir que é tudo o que ele faz: brincar com as coisas mais sérias.

           E fá-lo assim: disfarça-se, muito bem disfarçado, enquanto artista, claro, para, em simultâneo, se expor na sua pintura. E expondo-se, expõe-nos, para seu gozo e para gozo de todos os que gostam de gozar com a seriedade das mais geniais ideias malucas de todos os tempos.                      

          Tal como as taras metem ideias loucas na cabeça dos génios, o João, que não é génio mas tem uma tara genial, repito, mete-nos na cabeça as coisas mais impensáveis, que são, vejam bem, aquelas que mais nos dão que pensar. Sejam as que nos divertem ou as que nos perturbam.

            É um brincalhão, o João.

            Admitamo-lo ou não, tenhamos ou não consciência disso, somos todos. Uns brincalhões.

            Aliás, bem vistas as coisas, antes de o sermos já o éramos.

           Haverá brincadeira mais interessante do que aquela em que milhões de meninos pequeninos, como se jogassem às escondidas, organizam uma corrida para ver quem chega primeiro ao coito, sabendo à partida que só o mais rápido de todos lá poderá esconder-se?           

            O João é como o mais rápido destes meninos levados da breca. Não por ser veloz, que até nem é, mas por ser um diabinho largado no encantamento do seu pequenino mundo de brinquedos.

            Ele próprio os inventa, dentro e fora das telas, como a acanhada criança de olhar inocente que adora pregar partidas, pela calada, como quem não quer a coisa.

            E goza que se farta, o sonso, babando-se venenosamente no bibe da escola.

           Começa logo por este desconcerto: o João é um tímido, por isso o escritor que na essência ele é, se disfarça de pintor. Terá tido um desvio na idade da inocência e veio a cristalizar na melhor das idades, a da indecência. Passou a escrever com pincéis, mudou de léxico e mandou às urtigas as regras gramaticais e o decoro social. Desalinhou-se, enfim.

           Não satisfeito, pinta-se a ele próprio, metido em traquinices com amorosos monstrozinhos, ridículas fadas domésticas, machos latino-cretinos e fantasmas, muitos fantasmas. A estes últimos, dissimula-os no branco, no preto e no vermelho, esse trio que ele tão bem sabe usar para nosso tormento e delícia.

            E  ali vive, o João, no seu mundo de brinquedos, num puro gozo, rodeado de objectos delirantes, a tagarelar com uns e outros, transgredindo e brincando descaradamente como criança que se recusa a crescer. Nas tintas. Alquimista, descobriu o elixir da eterna infância.

            É de prever que no solene rigor das galerias todos aqueles  seres que constituem o universo do João se fechem e ninguém consiga ouvi-los. Mas em casa, meninos, aviso já, cuidado eles! Cuidado com as suas brincadeiras! Oiçam-lhes as risadinhas ácidas, sintam-lhes a inquietude nas maroteiras, adivinhem-lhes a permanente indignação.

           Com patinhas de gato, o João tem essa habilidade rara de invadir a despensa das nossas emoções sem que se dê por ele, de agitar-nos antes de usarmos as nossas armas de defesa. Pode dizer-se que as histórias que ele pinta ficam bem em nossa casa, vive-se bem com elas. Como se convive bem com a crueldade das nossas crianças.

          Consta que alguém, num impulso de acrílico-dependência,  saltou uma vez para dentro de uma das telas do João, como aquela rapariga no filme do Woody Allen. Explicou-se na altura o intruso aos do mundo do quadro, que apenas o fazia para ouvir mais de perto o que eles diziam, como eles representavam os guiões que o pintor escrevia. E os seres do quadro aceitaram o intruso como um deles, deram-lhe troco, foram permitindo que ficasse. E, ali ficando, sendo mais um deles, o intruso babou-se venenosamente no bibe de tanto se divertir.

         A coisa complicou-se quando mais gente veio intrometer-se nas telas do João. Vinham hoje uns, traziam depois outros, e as histórias pintadas enchiam-se de outras vidas. Terá sido por isso que, a dado momento, o João foi deixando nos quadros mais espaço para novas personagens poderem entrar livremente e brincar à descarada? Ou será que ele nem sequer imaginava que ainda houvesse tantos meninos crescidos e velhacos como ele, desejosos de efabular e revelar o avesso deste mundo do mau aspecto?

           A palavra a alguém de cu colado à cátedra, numa clara pretensão de menospreciar a obra do pintor:

           - Pois, é engraçado, vende-se bem, é ilustrativa, mas…

           Obviamente só pode ser brincadeira, pois até um espermatozóide coxo tem direito a brincar às escondidas.

           Pois, ilustrativa, e depois? E o resto? Não tem sido também a pintura do João visceralmente interventiva e corrosiva?

           Passiva não é seguramente.

           Reparem nos quatro deliciosos mafarricos num céu imenso e vermelhão lançando-nos um provocador e convidativo “Onde estás tu?”

           Parece uma brincadeira, não parece? E é, uma brincadeira muito séria.

           Pela minha parte mim, aceito o desafio, sempre, já que nunca deixarei de perguntar-me o que o João, estou em crer, constantemente se pergunta “Onde estou eu?”

         À falta de resposta convincente, é bom que tentemos ao menos saber com quem estamos nós neste mundo do mau aspecto, é bom que inventemos brinquedos, que preservemos parceiros de brincadeira e retardemos o cinzento que devora os adultos profissionais.

          Parco de lábia, desbocado no pincel, o João Vaz de Carvalho sabe como ministrar-nos a salutar dose diária desse elixir da eterna infância. Falo por mim, embora rejuvenescido, continuarei por ventura sem saber ao certo “Onde estou eu”. Mas sei que entre as criaturas do João que povoam este livro, há uma, de que gosto particularmente, que há-de ajudar-me a resolver o insondável enigma que é saber onde estou.

           Vão descobri-lo facilmente: é um homem narigudo e circunspecto, obsessiva presença desde os primeiros quadros do escritor, tem olhar de pedir desculpa por lá se ter intrometido. Lembra-me um homenzinho pequenino que vivia dentro dum frasco e que há muito tempo retratei numa canção. Desconfio saber de quem se trata. De todas aquelas criaturas brincalhonas do João é a que menos me fala, porém, a que mais me diz.

 

António Avelar de Pinho