Cláudia Moura

 

O homem tentador

 

Dois homens tomam banho numa banheira no meio espaço público, ninguém os vê. Quatro velhas siamesas dançam de roda com torneiras nas mãos. Um osso de roer por perto não é necessariamente uma mensagem cifrada. Passa uma fiada de homens disfarçados de relógio, de livro, de salsicha. Há várias maneiras de nos ocultarmos e um vasto catálogo de aparências para ver se nos caem bem. A actividade é intensa. As pessoas compenetram-se nas suas coreografias privadas, perfeitamente convictas do sentido que fazem. Olham para fora da tela com ar espantado, como se fosse do nosso lado que se passa algo de errado. Entram e saem de portas e alçapões e tentam sistematicamente enfiar-se dentro de qualquer coisa que as contenha. Não há nada de aflitivo nesta desadequação. É por puro espírito lúdico que insistem em experimentar, apenas para verificar se duas entidades distintas encaixam uma na outra. Os homens da banheira por exemplo, talvez não sejam dois mas um multiplicado por dois. O que não chega a ser absurdo, apenas uma probabilidade matemática capaz de gerar equilíbrios. As pessoas multiplicam-se em cadeias de produção, ocultam-se entre uma multidão de clones para que seja impossível ao observador isolar o original. Ou porque, como é natural, procuram a companhia do seu semelhante.

É então que o homem aparece nu. Impossível despi-lo da sua nudez. É a primeira vez que se apanha sozinho na tela o que lhe dá um olhar esgazeado. Ensaia alguma compostura mas o mundo físico fica-lhe a boiar. Não há fato onde caiba a sua pequenez, a sua idade, o seu sexo. A mulher deixou-lhe um espelho, uma melena comprida para se entreter a pentear, os vestidos e os sapatos vermelhos. E um busto fortificado como uma forma de bolos onde não é agradável tocar. Neste ponto, os gestos tornam-se supérfluos e os braços inúteis. Portanto o homem desmonta os braços e dá corda aos suspensórios para ver o que acontece.

O coração mantem-se intacto e é de abertura fácil.

 

Cláudia Moura

(Com vinte anos do trabalho do João misturados no cérebro e a segurança para poder afirmá-lo como o mais consistente, e no entanto o mais gentil, dos subversivos que há em Portugal.)