Emílio Remelhe

 

O Tecto do Mundo

 

Ao João Carvalho e ao Nuno Casimiro, a propósito do seu livro “O Mundo no Chão”.

 

Os livros encontram-nos onde estamos.

Desde que estejamos em algum lugar.

Os livros perseguem-nos. Desde que nos deixemos perseguir.

Os livros questionam-nos. Desde que queiramos questionar.

Os livros mudam-nos a forma como sentimos, pensamos, vemos ou fazemos as coisas.

Não vale a pena impingir os livros com explicações, que eles dispensam. Nem vale a pena escondê-los sob o pretexto de que não se compreendem, de que são difíceis ou menos fáceis. Porque isso não se mede nem pesa, muito menos por quem está interessado em vender fitas métricas ou balanças em vez de livros.

O que pode valer a pena é dar-lhes tempo. Tempo para serem lidos, vistos, apreciados, descobertos, trabalhados, traduzidos.

Dar-lhes o tempo que queremos para nós. Tempo de diálogo, de encontro, de trabalho, de prazer.

É isso que estas palavras, no máximo, querem ser.

 

Ainda não conhecia este livro quando me chegou às mãos.

Activou-me memórias e ressonâncias, como se fosse meu.

É um daqueles livros fáceis de apanhar na nossa teia autobiográfica.

Fácil escreve-se com f de difícil.

 

Escreveu-o como autobiografia?

Esta pergunta muitas vezes feita ao autor, talvez interessasse fazê-la mais vezes ao leitor: quer lê-lo autobiograficamente?

Quer encontrar-se a si próprio, mesmo por caminhos que talvez não conheça e que o levam a um lugar que talvez não reconheça assim, à primeira? Não? Então venha daí!

 

A casa, mundo dentro do mundo é um daqueles lugares que todos conhecemos e desconhecemos quanto baste.

E isto é quanto basta para entrar no Era uma vez.

Uma porta, uma parede, um buraco, um baloiço, tudo pode ser passaporte, já o sabemos, para esses outros lugares, imaginários.

 

O Nuno falou de buracos, de um buraco, vou pegar em baloiços.

O mistério é um baloiço.

Com uma das cordas presa no conhecido e outra no desconhecido.

E a vontade de andar de baloiço não espera pela leitura das normas de higiene e segurança no trabalho.

A gravidade atira-nos para baixo e andar de baloiço é desafiar a gravidade. Mas também sabemos que a terra é redonda – e ainda por cima anda às voltas sobre si própria e à roda dos vizinhos no nosso condomínio fechado.

Então o baixo, na terra, não existe, é o centro que nos puxa para baixo.

O centro da terra, que nos agarra numa realidade incontornável, pragmática, mas que tanto se presta a estar nos livros técnicos como nos de aventuras.

 

O chão do mundo tem todos os mundos que nele descobrimos. Cada pedaço de chão é um pequeno mundo cheio de coisas pequenas. Coisas que nos levam a outras coisas, num jogo infinito. Deste infinito só podemos fazer desenhos, textos, coisas limitadas. Fragmentos sim, mas que desejamos capazes de nos que nos devolver ao nosso infinito. 

 

Neste livro, o Nuno e o João são os observadores, exploradores e intérpretes desse infinito traduzido em fragmento e nós seguimo-los em visita guiada, encontrando as coisas mais óbvias traduzidas com a maior subtileza.

Obviamente o sonho tem sempre forma de menino.

Mas como sair e chegar a esta forma de sonho-menino-sonhador-sonhado sem prescindir da viagem entre uma partida e uma chegada?

Nisto de sonhos, sabe-se lá de onde partir, sabe-se lá aonde chegar, o que importa é a viagem.

Parece-me que o Nuno pegou num novelo de memórias colectivas e individuais e estendeu-o em linhas, paralelas, concorrentes.

Com elas, o João arrumou geometricamente o seu espaço e voltou a enrolá-las, com a sua característica circularidade. (mas não sei se o texto apareceu antes ou depois das ilustrações).

 

Nas ilustrações do João, a repetição é uma espécie de óbvio em que a mente se ri da ingenuidade dos olhos. E a redundância se orienta no sentido de abundância, da ambiguidade, da polivalência, e assim de ampliação narrativa. No texto do Nuno, os olhos esbugalhados das personagens do João encontram um contexto particularmente interessante. O do espanto.

O espanto da Filosofia e o espanto do Cinema, que davam agora tanto que falar. Felizmente, falar rima com calar. 

 

Este livro confirma que a curiosidade matou o gato.

Que a curiosidade mata os gatos mas salva os meninos.

Os meninos que nós somos. Confirma ainda, na minha leitura, que nunca se deve matar a curiosidade antes de a ter.

 

Concluindo com o valter, espero que tenham o livro, a partir de hoje, na despensa ou no frigorífico, sinónimos frugais de biblioteca.

 

ER, Porto, Papa-livros, 19 Novembro 2011