Valter Hugo Mãe

 

VER COM O DESEJO

 

Há dias, concluí que a obra do João Vaz de Carvalho me cria alucinações. Até hoje me lembro bem de estar na Galeria 111, no Porto, acompanhado pela Rui Brito, a pasmar diante das telas de uma exposição que nunca aconteceu. Por coincidência, eu, o João e o Rui Brito encontrámo-nos num mesmo lugar, e pude perceber que não se conheciam pessoalmente, não tinham qualquer contacto um com o outro, nunca haviam trabalhado juntos. Na minha cabeça, estive efetivamente com o Rui a ver os quadros do João e lembro-me perfeitamente de dizer que eram delirantes e divertidos, carinhosos, com figuras que nos parecem polegares animados, esfusiantes, irresistíveis. E o Rui respondeu: é um artista excecional. Andei atrás dele muito tempo até conseguir que viesse expor connosco.

Muita coisa pode justificar o facto de eu ter na memória, de modo tão vivo, algo que nunca aconteceu. Posso estar a ficar maluco, o que é sempre mais certo, mas pode ser que passarmos pelos livros, vivermos as suas histórias e experimentarmos as suas figuras, nos leve onde é suposto: a um outro mundo, feito de fantasia e maravilha. Precisamos com urgência de fantasia. Precisamos que a realidade permita benignamente aquilo que a imaginação quer. Escrever livros, ler pintar, desenhar, não é simplesmente representar o que existe, é transcender largamente o que existe. Partir deste lugar para algo que se revela apenas a partir da expressão. E, diante da expressão artística, todos nós vemos sobretudo com o desejo.

Procuramos caber em cada livro, quadro, canção, como se suplicássemos à arte uma atenção apenas nossa. Como se fôssemos carentes de precisássemos sempre de um reconhecimento na expressão de outrem. Assistimos à arte mas, utopicamente, queremos muito que a arte nos assista também. Quando descobri o trabalho do João Vaz de Carvalho recolhi todos os meus sonhos de menino e revi-os segundo novos rostos e cores. Pensei que todos os bonecos que amei e pelos quais sofri ou com os quais me diverti, deviam fazer uma operação plástica e mudar os seus rostos pasra serem assim, narigudos, de corpinhos arrebitados, os bracinhos escorridos como palitinhos engraçados. Eu sei porque é que assim o senti. Há uma beleza muito intrínseca nas figuras do João Vaz de Carvalho e que tem que ver com uma meninice genuína. Ou seja, estas figuras são como a versão madura do que efetivamente os miúdos poderiam querer desenhar.

Muito poucos artistas conseguem manter a lucidez em relação ao que efetivamente comunicam com os mais pequenos, e muito poucos o fazem chegando a uma qualidade absoluta que seduz os adultos também. De facto, ofereci a uns quantos amigos adultos o livro 28 Histórias para Rir, de Ursula Wölfel, e todos invariavelmente tiveram a mesma reação que tive eu.  Ativeram-se longamente ás ilustrações, incapazes da necessidade de ler o texto durante muito tempo. As ilustração eram de tal modo perfeitas que o livro facilmente deixou de ser para ler, passou a ser de contemplar e, como no meu caso, de mudar nos mecanismos do pensamento os padrões para uma definição mais rigorosa do que é a ilustração o do que é o mundo da fantasia de que precisamos para ser felizes. O meu mundo de fantasia para a minha particular felicidade é feito com bonecos destes. A Heidi, subitamente, passou a ser nariguda.

Quando a Vista Alegre inventou de convidar escritores para inspirarem peças da sua colecção, foi  a Adélia Carvalho quem me encorajou a acreditar que o João Vaz de Carvalho talvez aceitasse ilustrar a partir do meu livro O filho de mil homens. Acredito no poder melhorador do mundo que a Adélia tem e pensei que, com sorte, seria mulher para melhorar, mais uma vez, o meu mundo trazendo-me uma resposta positiva do João. Assim o fez. O homem que cria os bonequinhos do meu universo de fantasia para a felicidade havia aceite participar na peça que simbolizaria o meu livro. Era como se o meu livro e o meu imaginário inteiro se ajustassem a um sonho mais antigo, já maior, já mais maduro.

Assim, tenho uma paixão assumida por uma terrina de sopa. Sim, porque simboliza o Crisóstomo e a Isaura, mais o Camilo e a Matilde e aquela gente do meu livro que sempre me marca e de quem nunca mais posso abdicar. Mas estou apaixonado por uma terrina de sopa porque ela olha para mim, reconhece-me. Aquilo que dizia, de assistirmos à arte e termos o desejo utópico de que ela nos assista também. Pois, esta terrina observa-me, diz-me respeito, conhece-me. Isso não seria possível de qualquer maneira. Foi fundamental que os narigudos de bracinhos engraçados sejam este, os do João, para eu perceber como a fantasia faz sentido e deve ser um objetivo bem consciente. Há uma frase do livro na terrina, diz: “Quando se sonha tão grande a realidade aprende”. Creio que explica tudo. Andei a sonhar, a realidade aprendeu.

Simbolicamente, servirei  efetivamente uma sopa na minha terrina. Estarão à mesa as pessoas que compõem o meu círculo íntimo de afetos. A minha família. Vai ser uma mesa de luxo, a inventar na minha humilde casa uma espécie de palácio inteiro. Como no livro. Um palácio interior ao qual acedem apenas os corações.

 

Valter Hugo Mãe

 

Jornal de Letras de 20 de Fevereiro de 2013